Francisco Ferraz: A propósito de democracias


A propósito de democracias: estáveis e instáveis

Por Francisco Ferraz
O autor é gaúcho, cientista político e ex-reitor da UFRGS.


Democracia entre nós costuma ser definida exclusivamente de forma jurídico-normativa. Ignoram-se ou subestimam-se os aspectos históricos, sociológicos, culturais e políticos que constituem a tessitura social de uma nação e que se manifestam nos comportamentos.

Em termos abstratos, não há muita divergência sobre a natureza da democracia. Em termos históricos, sociológicos e políticos, há enormes diferenças. Talvez a mais relevante seja a distinção entre democracia estável e instável. No Brasil tende-se a confundir num mesmo conceito essas duas formas radicalmente diferentes de democracia.

A enorme maioria dos regimes chamados democráticos são democracias instáveis. Essas democracias frágeis são periodicamente sacudidas pela ocupação das ruas pelo povo, para protestar contra suas insuficiências. Em certos casos, a situação escapa do controle dos participantes e chega a pôr em questão, no todo ou em parte, o contrato social expresso na Constituição.

Muitos, ingênua ou oportunisticamente, consideram ser esse o momento áureo da democracia, ignorando que o clima emocional das ruas gera um falso sentimento de onipotência; dissocia poder de responsabilidade; subalterniza a lei; entrega a iniciativa política, quando não o próprio poder político, aos mais ousados e radicais, que não hesitam em explorar a histeria coletiva.

Democracias instáveis estão sempre à beira do golpe de Estado, de cronificar sua instabilidade ou de se transformarem em formas autoritárias ou totalitárias de governo.

Democracias estáveis, ao contrário, são construções institucionais longevas, institucionalizadas e raras, isto é alcançadas por poucas nações.

Os principais critérios para definir uma democracia estável são:

Durabilidade temporal de suas instituições.
As regras constitucionais sobrevivem às sucessivas gerações, sem sofrer alterações significativas.
Alto nível de legitimidade.
Instituições e autoridades políticas são percebidas como dotadas de um poder consentido, sua autoridade e suas normas legais são assumidas  como moralmente vinculativas.
Alto nível de eficiência governamental.
O regime enfrenta as crises e os desafios políticos e econômicos reduzindo-os a proporções suscetíveis de serem resolvidas pelo aparato institucional vigente.
Elevada autenticidade.
Instituições democráticas não são “meras fachadas”. As decisões governamentais resultam do rigoroso respeito às regras democráticas.
O fato da excepcionalidade das democracias estáveis deve-se, além dessa extrema complexidade, à persistência de uma ilusão – falsa, mas tentadora – a cegar os olhos dos líderes políticos: a Falácia da Imitação Institucional,que se sustenta no falso pressuposto de que uma democracia estável depende fundamentalmente de uma boa constituição.

A expressão política mais frequente dessa forma de pensar é o vício de achar que a todo o momento se pode mexer na constituição para adequá-la às pressões da conjuntura; a continuada “comichão” pela convocação de assembleias constituintes; a atração inconsequente por plebiscitos, referendos, reformas políticas; e, mais recentemente, a judicialização da política.

Historicamente, essa forma de conceber a política depende de três procedimentos: (1) cópia de instituições políticas das democracias estáveis ou instáveis preferidas; (2) capacidade inventiva de juristas para criar novidades institucionais sem respaldo na experiência prática; e (3) a convicção de que os fatos sociais são facilmente assimiláveis pelas normas jurídicas promulgadas.

Na realidade, quando uma democracia estabelece raízes e adquire estabilidade, é porque um ajuste entre valores e práticas do sistema político com os do sistema social foi conseguido.

O comportamento democrático não é inato.

Precisa ser aprendido e praticado. Esse aprendizado é espontâneo, ocorre no lar e na escola onde se confunde com a educação moral. Na falta desse ajuste, ambos os sistemas (politico e social) estarão em conflito, provocando aguda dissonância cognitiva e a incapacidade de entender e praticar comportamentos democráticos.

A democracia é, acima de tudo, um sistema político de moderação. Moderação das elites, mas também do povo; moderação no competir, no vencer e no perder; moderação no exercício do poder e no exercício da oposição. Basicamente, democracia, é um sistema que reconcilia valores extremos num delicado estado de equilíbrio.

Talvez os principais valores a serem equilibrados numa democracia sejam:

Equilíbrio entre conflito e consenso
Esse equilíbrio de certa forma sintetiza todos os demais. Ele é responsável pelo atingimento do estado de conflito moderado, que é quase sinônimo de democracia estável.
Equilíbrio entre participação e não participação
Os cidadãos devem saber não penas participar na vida política de suas comunidades, mas o que é mais importante, quando, quanto e como participar. A política e sobretudo o conflito político não podem ser um assunto de vida ou morte; liberdade ou prisão; emprego ou desemprego. O cidadão deve decidir quando se envolver e quando se afastar da política.
Equilíbrio entre poder e responsividade governamental
Há um entendimento vulgar de que, na democracia, os governantes deveriam sempre atender tudo o que os cidadãos reivindicam. Na realidade, as elites democraticamente eleitas recebem o poder para governar e, dentro dos limites constitucionais, podem e em certos casos devem, contrariar a opinião pública e a vontade de maiorias eventuais e volúveis. Devem governar o hoje, sem esquecer que também precisam preparar o amanhã.
Equilíbrio entre pragmatismo e ideologia
Se muitos princípios podem inviabilizar a ação de governo pela rigidez excessiva que introduzem na administração, a ausência de princípios inviabiliza a legitimidade do sistema político, daí a necessidade do equilíbrio entre pragmatismo e ideologia.
Equilíbrio entre autoridade e liberdade
Democracia é o regime político da liberdade, o que não exclui o uso constitucional da autoridade para sua defesa e para exercer as funções de governo.
Equilíbrio entre racionalidade e emotividade
Princípios de racionalidade são essenciais para a eficiência do governo. Princípios baseados na emoção são cruciais para a legitimidade do sistema.
Tais equilíbrios dependem de comportamentos que, não sendo inatos, precisam ser aprendidos e tornarem-se hábitos. É assim que os adultos, pela educação e socialização das crianças, preparam os futuros cidadãos, para viver e exercer sua cidadania numa autêntica democracia estável.

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