‘Juiz de garantias vai ser uma tragédia’ diz José Paulo
Cavalcanti Filho
jamildo
Publicado em 11/01/2020 às 16:16
De férias das páginas do JC, o advogado José Paulo
Cavalcanti Filho escreveu artigo sobre o juiz de garantias para a revista Será.
Vale a pena a leitura.
Por José Paulo Cavalcanti Filho
1. A VERDADE DA VERDADE. Quando João Rego (em nome de Aécio
Matos, Clemente Rosas, Sergio Buarque e todos os crentes no futuro que fazem a
Revista Será?) pediu opinião sobre o Juiz das Garantias, criado pela Lei 13.964
(de 24/12/2020), pensei (a cabeça tem seus mistérios) logo num curioso diálogo
de Alice no País das Maravilhas:
“Rainha: Você conhece a falsa tartaruga?
Alice: Eu nem sei o que é uma falsa tartaruga.
Rainha: É aquilo de que são feitas as falsas sopas de tartaruga”.
Alice: Eu nem sei o que é uma falsa tartaruga.
Rainha: É aquilo de que são feitas as falsas sopas de tartaruga”.
A arte de sugerir sem explicar, de enganar sem enganar, de
dizer quase tudo como um quase nada, é próprio desse professor de Oxford e
maior matemático inglês do Século XIX – que se assinava só pelo sobrenome,
Dodgson. Autor, entre outros, do Tratado Elementar dos Determinantes ou
Euclides e seus Rivais Modernos. O mesmo que a partir de 1856, na literatura,
passou a ser Lewis Carroll. Sendo, o L e C desse como que heterônimo, um
anagrama imperfeito e invertido das iniciais, C e L, dos seus dois primeiros
nomes, Charles Lutwidge. Assim também se deu com Charles Dickens, que escreveu
David Copperfield. O autor, CD, convertido em seu personagem, DC. Em inglês, LC
é também o próprio som (pronunciado naquela língua) do nome de seu personagem,
Alice. Ele era ela. Cumprindo lembrar que se chamava Alice (Liddell) uma jovem
amiga do autor. Seja como for, seu livro acabou sendo o mais citado na
literatura universal. Depois da Bíblia.
E é como se o personagem fosse, a um só tempo, ele próprio e
seu oposto. Não por acaso. Que o autor era homem e Alice, mulher. Ele velho,
ela jovem. Ele culto, ela inocente. Ele reverendo da Igreja Anglicana, ela
“praticamente leiga”. Ponto e contraponto. Transpondo, para os diálogos do
romance, um jogo sutil e provocante de linhas e entrelinhas. Deixando entrever
as muitas faces do que, para cada um de nós, poderia ser a verdade. Tanto que o
livro que lhe dá sequência, Alice Através do Espelho, funciona como uma chave
para entender a trama. Sugerindo que a verdade está do outro lado do espelho.
Agora, melhor por de lado esses devaneios literários para tratar do tema
solicitado pela Revista. Valendo, o texto que se segue, como uma tentativa de
entrever a verdadeira verdade sobre o tema. Pensando no leitor comum, não
iniciado em textos jurídicos. E tudo a partir de uma frase dita com frequência
por outro personagem de Alice, o Dodó: “A melhor maneira de explicar isso é
fazê-lo”.
2. DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO. Tudo começa com o Tratado
Internacional de Direitos Civis e Políticos, mais conhecido como Pacto de San
José da Costa Rica. Um texto que passou a valer como legislação brasileira, bom
lembrar, faz bastante tempo. Desde o Decreto Legislativo 27/1992. E a
preocupação faz sentido. Que, nas democracias modernas, condenados vão à cadeia
logo após o julgamento em apenas uma Instância. Assim se dá nos Estados Unidos,
Canadá, Inglaterra, Alemanha, França, Espanha. Só para lembrar, todos os 193
países da ONU têm prisão em Primeira ou Segunda Instância. Itália e Portugal
merecem exames à parte, no tanto em que alguns (poucos) delitos específicos
requerem outras instâncias. Mas, como regra geral, único país do mundo em que
criminosos não vão presos em Primeira ou Segunda Instância, hoje, é mesmo só o
Brasil. Em 4 instâncias. Isso antes do Juiz das Garantias. Que, agora, são 5.
Algo novo. Decorrência do Mensalão e da Lavajato, quando ilustres membros de
nossas elites políticas e econômicas começaram a ver o sol quadrado.
Prisões por aqui, bom lembrar, sempre se deram em Primeira
Instância. E não apenas até o Código de Processo Penal de 1941, como é usual
ler nos jornais. Passando a ocorrer em Segunda Instância, na verdade, só a
partir da Lei Fleury (5.941/73). Uma boa lei. Em plena Ditadura, quem diria?
Quando foi admitida, limitadamente ainda assim, apenas para réus primários e de
bons antecedentes. A ideia de mais uma instância, que não consta de nenhuma
lei, nasceu não para beneficiar pessoas possivelmente inocentes. Mas como
proteção a um torturador relés. Nascendo mais tarde, essa prisão em Segunda
Instância, como uma construção do Supremo.
Voltemos ao Pacto de San José. No tanto em que considera não
ser razoável que alguém vá à prisão pelas mãos de apenas um juiz. Por isso
proclamou ser democrático, e necessário, o Duplo Grau de Jurisdição. Que se dá,
segundo o Pacto, pelo “direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal”
(art. 8,2,4). “Juiz ou Tribunal”, é bom reter essa regra. Com o duplo grau
podendo se dar na própria Primeira (Juiz) como, também, na Segunda Instância
(Tribunal). Nos Estados Unidos, França e Itália, um juiz prepara o processo
que, depois, é decidido pelo juiz do feito. Semelhante ao sistema criado agora
no Brasil. Como se fossem duas instâncias. Sendo a sentença, posteriormente ao
trabalho do Juiz das Garantias, prolatada por juízes de Primeira Instância –
que, com a nova lei, passaram a se chamar Juízes de Instrução e Julgamento. Mas
não há consenso nas democracias, sobre ele. Tanto que não se vê algo assim em
numerosos países culturalmente maduros. Sendo bom lembrar que Alemanha, Holanda
e Itália, que já tiveram Juízes de Garantias, decidiram não mais preservá-los.
Renunciaram a eles. Por considerá-los uma inutilidade absoluta.
3. O DUPLO GRAU JÁ EXISTE NO BRASIL. Ocorre que sistema como
esse de um Duplo Grau de Jurisdição, agora criado, já existe no Brasil. E em
outros países, com estruturas judiciárias semelhantes à nossa. É inacreditável
que isso não seja dito, e reiterado, pelos jornais. Operado, o Segundo Grau,
pelos Tribunais. “Juiz ou tribunal”, bom lembrar, como dispõe o Pacto de San
José.
A razão de haver já uma espécie de Duplo Grau, antes da
adoção do tal Juiz das Garantias, se dá porque o recurso nas decisões em
Primeira Instância, Apelação, tem aqui efeitos Suspensivo (a decisão
monocrática não produz, provisoriamente, nenhum efeito, até decisão dos
Tribunais); e, também, Devolutivo (fazendo com que o assunto deva ser
rediscutido por Tribunal). Enquanto os recursos subsequentes, Especial e
Extraordinário, contra decisão já desse Tribunal, apenas têm efeito Devolutivo.
Determinando seja o caso reexaminado por Tribunais Superiores – STJ e Supremo.
Sem interferir nas condenações. Que deveriam ser imediatamente executadas, para
evitar o risco das prescrições. E sem que se possa rediscutir provas, por conta
das Súmulas 7 (do STJ) e 279 (do Supremo). A sistemática não foi alterada com a
Constituição de 1988. Suspensa em breve interlúdio (no Mensalão, quando alguns
políticos muito ligados ao poder começaram a ser condenados), em razão do HC
84.048, em 2009; voltou a ocorrer em Segunda Instância, com o do HC 126.292, em
2016 (por 7 votos a 4); passando mais recentemente, nas ADs 43, 44 e 45 (em
07/11/2019), a se dar em Quarta Instância (por 6 votos a 5).
Vale a pena explicar isso com mais vagar. Tudo vale a pena.
É que, no sistema criado agora, o Juiz das Garantias prepara o processo;
dando-se, um julgamento definitivo, só com o Juiz de Instrução e Julgamento.
Fosse uma inovação séria, e a prisão deveria se dar já nessa decisão em
Primeira Instância. Como numerosos outros países. Quando se tem performado, nos
contornos do Pacto de San José, o Segundo Grau de Jurisdição. “Juiz ou
Tribunal”. Como todas as democracias culturalmente maduras. No Brasil, a
decisão de Primeira Instância ainda vai ser novamente discutida, nos tribunais.
Que podem solicitar novas provas, novos depoimentos, novas perícias e mais o
que quiserem, ao juiz de Primeira Instância que proferiu a sentença. Da mesma
forma que o Juiz de Instrução e Julgamento pode requerer o mesmo, ao Juiz das
Garantias. Na sistemática que foi agora criada, o tal Juiz das Garantias
funciona como uma instância a mais. Uma Quinta Instância, pelas regras de hoje.
O mestre Modesto Carvalhosa tem também essa opinião. Levando enorme número de
processos à prescrição. Sobretudo no caso de réus que podem pagar advogados
caros. Que têm compulsão por usar todos os recursos disponíveis no Código de
Processo Penal. Muitas e muitas vezes.
As consequências práticas de um sistema como esse resultam
devastadoras, no combate ao crime. Sobretudo porque não é necessário. Como se
pode comprovar de estudo recente da Coordenadoria de Gestão da Informação
(01/01/2009 a 19/04/2016) do STJ. Absolvições, pelo STJ, correspondem apenas a
0,62% dos casos. E, no Supremo, a somente 0,035%. Repetindo, 0,035% dos casos.
Só 9 absolvições, em 25.707 recursos. Cabendo ainda em tais situações, para
corrigir eventuais injustiças, o recurso ao Habeas Corpus. Sobretudo quando o
julgamento anterior afronte a jurisprudência dos Tribunais Superiores. E não se
trata, nesses raríssimos casos, de réus que possam ser considerados inocentes.
Longe disso. Quase sempre se dando, nesses casos, em razão de prescrição ou
detalhes meramente formais. Como limitação ao direito de defesa. Sobre a
tragédia que vai ser essa alteração de entendimento, por conta de tão poucas
absolvições, passo a palavra ao Ministro Luiz Roberto Barroso: “Subordinar todo
o sistema de justiça a índices deprimentes de morosidade e ineficiência, para
produzir este resultado, é uma opção que não passa em nenhum teste de
razoabilidade ou de racionalidade”. E assim se dá, por enquanto, em nosso atual
Supremo.
4. QUAL O PAPEL REAL DO JUIZ DAS GARANTIAS? Mas então, se
assim passou a ser, qual o papel real do tal Juiz das Garantias? A resposta é
simples. Apenas o de impor mais uma instância, em benefício dos réus. Aquele
que pratica crimes. Porque suas atividades já são hoje exercidas pelos juízes
de Primeira Instância. Enquanto os países da ONU, todos, julgam em uma ou duas
instâncias, o Brasil, que já tinha quatro, agora passará a julgar em cinco
instâncias. Nossos Deputados e Senadores conseguiram essa façanha. E o
Presidente da República, que tem um filho investigado (27ª Vara Criminal do
Rio, com o juiz Flávio Itabaiana de Oliveira Nicolau), não vetou a rega. É lamentável.
Os problemas começarão desde sua implantação. A partir de
dados do Conselho Nacional de Justiça – CNJ (confirmados pela Associação de
Juízes Federais – AJUF), se vê que o Brasil, hoje, funciona com 18.100 juízes.
Déficit de 4.400 vagas. Das 2.700 comarcas da Justiça Estadual, 1.800 tem
apenas um magistrado. Sem contar as muitas que não têm um único Juiz. Mesmo
vigente regra de ser maior remuneração do país a de Ministro do Supremo (R$
39.293,32), o salário médio de cada juiz estadual é bem maior, de R$ 47.400,00.
Um escândalo, dirão muitos. Ainda sendo necessário contratar, imediatamente,
mais 1.800 novos juízes. Em resumo, não há estrutura para que isso funcione. E
os custos irão à estratosfera. Para quê? Aqui, lembro poema de Ascenso Ferreira
(O Gaúcho),
“Riscando os cavalos!
Tinindo as esporas!
Través das cochilhas!
Sai de meus pagos em louca arrancada!
— Para quê?
— Pra nada!”
E, assim, a resposta do problema está na literatura – que imita a vida. Vai servir para quê? Pra nada!
Tinindo as esporas!
Través das cochilhas!
Sai de meus pagos em louca arrancada!
— Para quê?
— Pra nada!”
E, assim, a resposta do problema está na literatura – que imita a vida. Vai servir para quê? Pra nada!
5. PROBLEMAS TÉCNICOS. Os jornais passaram ao largo de
enormes problemas técnicos que se darão na aplicação da Lei. Redigida com o
propósito, evidentíssimo, de sobretudo beneficiar os réus. Apenas para referir,
seguem alguns poucos pontos: Art. 3–B. XV: Pelo qual o investigado terá acesso
a todas as “provas produzidas no âmbito da investigação criminal”. Antes mesmo
de completado o inquérito. Abrindo um grande conjunto de possibilidades para a
defesa Art. 3–B, § 2º: Dispondo que o inquérito poderá ser prorrogado “uma
única vez”, e por “até 15 dias no máximo. Após o que a prisão será
imediatamente relaxada”. Sem qualquer razão aparente para isso. Sendo
previsível um enorme contingente de investigados que serão libertados muito
antes do que ocorre hoje. Art. 3º C–, § 2º. Aqui, vênia para transcrever toda a
regra: “Se o investigado estiver preso, o juiz das garantias poderá, mediante
representação da autoridade policial e ouvido o Ministério Público, prorrogar,
uma única vez, a duração do inquérito por até 15 (quinze) dias, após o que, se
ainda assim a investigação não for concluída, a prisão será imediatamente
relaxada”. Significando que, caso haja provas posteriores que venham de ser
produzidas, e não mais poderão ser aproveitadas no processo. Beneficiando, sem
nenhuma razoabilidade, quem pratica crimes.
6. FINAL. A Associação dos Magistrados Brasileiros–AMB
intentou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADIN contra a medida, em
27/12/2019. Fundamento principal é que “a jurisdição é una e indivisível”. Com
“violação ao princípio do juiz natural (CF art. 5º, III). O Ministro Fux, que
dia 20 de janeiro assumirá o plantão no Supremo, vai decidir se concede liminar
suspendendo sua implantação, até julgamento dessa ADIN pela Corte. Os jornais
dizem que já manifestou ser contrário à regra. Mas dificilmente se conseguirá
isso do Supremo. Afinal, trata-se (ao menos segundo penso) de regra processual.
Dentro da competência do Congresso. E o Supremo jamais vai considerar o Juiz
das Garantias inconstitucional.
Em resumo, o novo juiz vai ser um atraso no combate ao
crime. Especialmente de corrupção. O professor argentino Alberto Binder
considera, essa nova regra, “inimiga da reforma” verdadeira. Por isso não houve
debate sobre o tema, no Congresso. Nenhum especialista foi ouvido. Nem órgãos de
classe, de advogados ou juízes. Só uma pequena parcela da Câmara dos Deputados
votou. Uma câmara que, segundo os jornais, tem 284 Deputados processados ou
investigados. Provavelmente, apenas coincidência. Que Deus nos proteja.
Para encerrar, e apesar de tudo, prefiro usar palavras de
esperanças. No sentido de que, um dia, tudo poderá mudar. Espero que mude,
ainda. Na disposição de sonhar com dias melhores. E já que começamos esse
pequeno texto com Alice, bom findar também com ela. Quando relata que sonhou.
Após o que, diz: “No fim de contas eu não estive sonhando. A não ser… a não
ser… que todos façamos parte do mesmo sonho”.