ENTRE NAUFRÁGIOS E BATALHAS: A VIAGEM DE MARTIM AFONSO NA
FUNDAÇÃO DE SÃO VICENTE
Entre 1531 e 1532, uma expedição de exploradores europeus
chegou no litoral de São Paulo e deu início à história paulista moderna, sendo
os responsáveis por tornar a aldeia de São Vicente uma vila oficial e pela
realização das primeiras eleições da América. Mas a viagem foi desafiadora, e
por muito pouco não terminou em tragédia...
Diários de bordo são livros mantidos pelos capitães de
embarcações onde registram todos os dados de navegação tais como direção
seguida e condições do mar e do vento, Num tempo em que as facilidades modernas
como internet e GPS estavam a séculos de ser inventado, tais registros eram
importantíssimos para ajudar a guiar outras viagens com destino aos mesmos
lugares. Da armada de Martim Afonso, composta por diversos navios, chegou a
nossos dias o diário de bordo escrito por Pero Lopes, seu irmão e capitão de
uma das embarcações - e que se tornou um dos mais importantes documentos da
história de São Paulo.
"Na era de 1530, sábado três dias do mês de dezembro,
parti desta cidade de Lisboa, debaixo da capitania de Martim Afonso de Sousa,
meu irmão, que ia por capitão de uma armada e governador da terra do Brasil:
com vento leste saí fora da barra, fazendo caminho do sudoeste." - assim
começa o diário, contando em geral com curtos registros sobre a navegação em
si; infelizmente, não conta com outras informações que enriqueceriam nosso
conhecimento, tais como tripulação, passageiros e carga.
Uma semana depois, a esquadra passou em alto mar pelas
primeiras porções de terra no Oceano Atlântico: os arquipélagos de Madeira e
Canárias. Seguindo a partir daí paralelos ao continente africano, os
exploradores cruzaram com um barco de pesca português no dia 20 do mesmo mês, e
por ele mandaram uma carta a Portugal para avisar que tudo havia corrido bem na
partida.
Na noite do dia 24 de dezembro, véspera de Natal, a esquadra
chegou no arquipélago de Cabo Verde, onde pretendiam parar para abastecer os
navios de suprimentos para a longa travessia do Atlântico Sul. Entretanto, o
mau tempo estava presente, e Martim Afonso ordenou que Baltazar Gonçalves,
capitão da caravela Princeza, fosse na frente para indicar o melhor caminho até
o porto. Subitamente, um intenso nevoeiro toma conta da região, e todos os
navios da esquadra perderam-se uns dos outros. Tais coisas eram comuns de
acontecer num tempo em que nem rádio existia, mas certamente sempre causavam
certa apreensão na tripulação, pois num eventual naufrágio não haveria socorro por
perto.
Com a melhora no tempo no dia 28, parte dos navios conseguiu
se reunir novamente e saiu em busca dos demais pelos arredores das ilhas do
arquipélago. Durante as buscas, Pero Lopes e Martim Afonso avistaram dois
navios espanhóis que também estavam por ali para reabastecer; quando
questionados sobre o destino da viagem, os castelhanos informaram que iriam
para o Maranhão, e Martim Afonso ordenou que não fossem para lá, pois, de
acordo com o Tratado de Tordesilhas mantido entre os dois países, ali era sua
jurisdição. Somente no dia 29 conseguiram encontrar novamente a caravela
Princeza na localidade de Ribeira Grande, e por lá ficaram durante as
festividades de Ano Novo reabastecendo as embarcações para a etapa mais difícil
da jornada.
A travessia do Atlântico era sempre desafiadora. Eram vários
dias em alto mar sem avistar terra onde os navegadores tinham que seguir
aproximadamente a direção sudoeste, porém, sem bússolas para guiá-los, visto
que este instrumento só foi inventado mais tarde. Os cálculos de direção eram
feitos quase sempre baseados nas estrelas, motivo pelo qual os navegadores
deveriam ter grande conhecimento do céu; Martim Afonso estudou durante anos
matemática e cosmografia com Pedro Nunes, uma das maiores autoridades do
assunto na época.
No dia 3 de janeiro de 1531 finalmente partiram de Cabo
Verde, e apesar de um pequeno contratempo na partida, quando um vento forte
causou pequenas avarias nas embarcações, a travessia ocorreu sem maiores
problemas. Cerca de 20 dias depois, passaram a aproximadamente 86 quilômetros
da Ilha de Fernando de Noronha, mas ainda não avistavam terra. Somente no dia
30 tiveram uma boa notícia: como não avistaram peixes ao redor das embarcações,
significava que estavam próximos a costa. Dito e feito: finalmente, no dia
seguinte, a expedição de Martim Afonso avistou pela primeira vez a América.
Mas a euforia pouco durou: junto de terra, avistaram também
uma nau navegando para o norte. Martim Afonso ordenou que dois de seus navios
fossem na direção para onde ela ia, enquanto os outros dois a cercariam pelo
sul; vendo-se cercados, a tripulação da nau abandonou a embarcação e fugiu para
terra firme. A nau, que descobriram ser francesa, estava repleta de armas,
munições e um enorme carregamento de pau-brasil; logo após, outra nau repleta
de madeira foi encontrada e tomada por Martim Afonso, passando a fazer parte da
expedição. Os poucos tripulantes que nela ficaram informaram ainda que havia
mais duas naus da França pelas redondezas, e no dia seguinte, Pero Lopes saiu a
caça delas. Os franceses eram as principais ameaças para os navegadores
portugueses da época, pois, como a França não fora contemplada com terras no
novo continente pelo Tratado de Tordesilhas, buscava explorá-las à sua maneira
dentro dos domínios de Portugal e Espanha.
Martim Afonso, comandando a caravela São Miguel, foi
juntamente com o galeão São Vicente e a nau capturada em direção ao Cabo de
Santo Agostinho, ponto de referência para os navegadores da época, enquanto
Pero Lopes (e provavelmente a Princeza) continuavam à caça dos franceses. No
dia 1 de fevereiro, subitamente ao fim da tarde, o navio de Pero recebeu dois
tiros: eram os franceses, que ao contrário dos encontrados no dia anterior,
estavam dispostos ao combate. Pero Lopes atirou de volta, porém com a distância
e a escuridão da noite só restava aguardar pelo dia seguinte. Às 7 horas da
manhã do dia 2, a nau francesa se aproxima e efetua 32 tiros contra a
embarcação de Pero Lopes, danificando vários equipamentos mas, por sorte, não
deixando feridos. Martim Afonso e os demais navios chegaram para auxiliar e
numa manobra técnica de pilotagem abalroaram os franceses, que se renderam pois
ficaram sem pólvora. Toda a carga de pau-brasil e armamento foi capturada, e a
tripulação (incluindo os seis feridos no combate) feita de prisioneira.
Passadas as animosidades, no dia 3 finalmente chegaram nas
praias perto do Cabo de Santo Agostinho (proximidades da atual cidade de
Recife). E pela primeira vez tiveram contato com nativos do continente:
"Este dia vieram de terra, à nado, às naus, índios a perguntar-nos se
queríamos brasil" (pau-brasil). Ao contrário do que muitos pensam, em
geral, os índios do litoral eram receptivos aos navegadores pois descobriram
que era possível fazer comércio com eles. Os índios então passavam a montar
estoques de pau-brasil nas praias e quando avistavam alguma embarcação iam até
ela oferecer madeira; em troca, recebiam produtos da metrópole como roupas e
armas.
Entretanto, depois de mais de um mês navegando sem parar,
restava pouca água potável nas embarcações. Procuraram em terra, mas não
acharam, e Martim Afonso decidiu ir sozinho com a caravela Rosa a Recife para
buscá-la. Mais de uma semana depois, não retornaram, e Pero Lopes, numa
situação já emergencial, conseguiu achar um rio onde seus tripulantes pudessem
beber água; foram então a Recife onde se reuniram com o resto da frota, exceto,
justamente, o de Martim Afonso. Estaria o capitão desaparecido? As notícias
negativas também não paravam de chegar: em Recife, ficaram sabendo que a
feitoria (entreposto comercial) existente no local fora saqueada dois meses
antes por navios franceses, e não havia nada ali que pudesse reabastecer a
frota; como se não bastasse, sete homens da tripulação morreram afogados
enquanto nadavam ao redor dos navios.
Somente no dia 19 Martim Afonso reapareceu. Com o princípio
de confusão tomando conta da expedição, o capitão decide reorganizá-la: mandou
todos os doentes (inclusive os prisioneiros franceses feridos) para a feitoria
de Recife, onde seriam tratados; mandou as duas caravelas para o Maranhão; uma
das naus francesas capturadas de volta para Portugal para enviar notícias
deles; e colocou fogo na outra nau francesa par que não pudesse ser
reaproveitada por ninguém. Reabasteceu e partiu para o resto da viagem com três
embarcações: a nau capitânia, o galeão São Vicente (tendo como capitão Pedro
Lobo Pinheiro) e a primeira nau capturada dos franceses, comandada agora por
Pero Lopes e rebatizada com o nome de "Nossa Senhora das Candeias".
No dia 13 de março, após várias tempestades pelo caminho,
chegaram em Salvador, onde reabasteceram água e lenha e efetuaram reparos nas
embarcações durante os próximos cinco dias. Nos conta ainda Pero Lopes:
"Nesta bahia achamos um homem português, que havia 22 anos que estava
nesta terra; (..). Os principais homens da terra vieram fazer obediência ao
capitão e nos trouxeram muito mantimento, e fizeram grandes festas e bailes,
amostrando muito prazer por sermos aqui vindos." Conta ainda que os índios
do local eram de pele branca e dispersos em aldeias espaçadas de duas em duas
léguas, que frequentemente guerreavam entre si; os perdedores eram mortos e
comidos pelos vencedores. Martim Afonso deixou lá dois homens de sua tripulação
com algumas sementes para fazer experiências na terra e ver o que poderia ser
cultivado ali.
Na semana seguinte, durante o caminho, cruzaram com uma
pequena embarcação que levava Diogo Dias, o feitor de Recife que ainda estava
fugindo dos franceses. Martim Afonso o resgatou e ordenou que voltassem para
deixá-lo em Salvador juntamente com todos os presos franceses, que ganharam
liberdade.
No dia 30 de abril, e expedição chegou ao Rio de Janeiro,
onde Martim Afonso ordenou que fosse construída uma casa-forte; ali ficaram por
mais de três meses enquanto quatro homens da tripulação adentraram pelo sertão
para explorar a região. Estes homens, segundo narra Pero Lopes, encontraram em
algum local ignorado um grande rei indígena, "senhor de todos aqueles
campos", e que os acompanhou na volta ao Rio de Janeiro, onde entregou
cristais a Martim Afonso e contou que no Rio Paraguai havia muito ouro e prata.
Seria este cacique Tibiriçá? É possível, pois o tempo de estada é compatível
com uma viagem de ida e volta a pé à São Paulo, e somente os índios paulistas poderiam
ser tão bem informados sobre a existência de metais preciosos no Paraguai
devido à existência do caminho do Peabiru e seu comércio com os incas e
guaranis.
Pretendiam fazer uma próxima parada justamente em algum dos
três portos que davam acesso à trilha de Peabiru: São Vicente, Cananeia e
Florianópolis. Ao passar por São Vicente, entretanto, foram tomados por uma
cerração e não conseguiram encontrar ninguém em terra firme; desembarcaram na
Ilha de Alcatrazes e se alimentaram das aves que lá estavam. Em 12 de agosto de
1531, finalmente, chegaram à Ilha de Cananeia, onde coube a Pedro Anes Piloto,
fluente em tupi-guarani, o contato com os locais. Foi neste local que Martim
Afonso conheceu o famoso "Bacharel" Cosme Fernandes, uma das figuras
mais controversas da história paulista, que já vivia no local havia 30 anos
juntamente com outros castelhanos e carijós. Informou ao capitão que havia
muito ouro e prata no sertão, e Martim Afonso ordenou que 80 dos 400 homens que
levava ficassem por lá para realizar uma expedição por terra enquanto seguiu
viagem para o sul.
Finalmente, em 15 de outubro, chegaram ao então Cabo de
Santa Maria, atual Punta del Este, no Uruguai. Nos próximos dias, uma terrível
tempestade toma conta da expedição, que se dispersa, mais uma vez, sendo que
agora a preocupação era real: o navio de Martim Afonso foi avistado ao longe
com as velas quebradas e muito próximo a pedras. Pero Lopes juntou os 30 homens
que melhor nadavam de sua tripulação e os enviou para terra para procurar por
eventuais sobreviventes do provável naufrágio da nau capitânia. No dia 25,
felizmente, dois dos nadadores encontram náufragos numa praia, onde comemoraram
o reencontro com cantigas em meio a muitas lágrimas. A maioria da tripulação
sobreviveu, incluindo Martim Afonso; infelizmente, sete homens faleceram, sendo
seis por afogamento e um “de pasmo”.
Na praia, Martim Afonso reuniu-se com todos e decidiu não
prosseguiu viagem para dentro do Rio da Prata por duas razões: primeiro porque
grande parte dos suprimentos da expedição foram perdidos no naufrágio, e
segundo porque as duas naus que restaram estavam muito danificadas. Fixou ainda
marcos de pedra na região para marcar o domínio da Ordem de Cristo ali, onde os
portugueses defendiam ser o limite da Linha de Tordesilhas; os espanhóis
defendiam que ela seria mais a leste e que todo o litoral do Uruguai até o
Paraná lhes pertencia.
Pero Lopes explorou, com pequenas embarcações, todo o
estuário do Rio da Prata (divisa entre Uruguai e Argentina), encontrando lá
alguns índios que vieram em pequenos barcos até sua nau em várias ocasiões.
"Traziam arcos e flechas e azagaias [lanças] de pau tostado, e eles com
muitos penachos todos pintados de mil cores; e chegaram logo sem mostrarem que
havia medo: senão com muito prazer abraçando-nos a todos. A fala sua não
entendiamos, nem era como a do Brasil". Os nativos deram aos europeus
carne, e Pero os retribuiu com pescaria: "ficaram tão contentes e
mostravam tamanho prazer, que parecia que queriam sair fora do seu siso" -
uma curiosa forma de descrever o tamanho do sorriso de alguém, equivalente a
"de orelha a orelha".
No dia 27 de dezembro, pouco mais de um ano da partida em
Lisboa, reencontra-se com Martim Afonso na localidade conhecida como Ilha das
Palmas, onde partiram, no último dia do ano de 1531, “para irmos ao Rio de São
Vicente” – ou seja, aqui fica clara a intenção de edificar a vila em São
Vicente, e que a escolha do local não fora mero acaso.
Em 9 de janeiro de 1532, a esquadra de Martim Afonso entra
em Cananeia pela segunda vez, com o objetivo de reabastecer novamente e
embarcar os 80 homens que o capitão havia lá deixado na viagem de ida para
explorar o continente – os quais, soube-se depois, foram vítimas de uma
emboscada e apenas quatro haviam sobrevivido.
“Segunda-feira, 21 de janeiro demos a vela, e fomos surgir
numa praia da Ilha do Sol [atual Ilha de Santo Amaro, onde fica a cidade de
Guarujá]; pelo porto [Praia do Góes] ser abrigado de todos os ventos." No
dia seguinte, estacionaram as naus na foz do Rio Santo Amaro, local onde
atualmente está o Iate Clube de Santos, e foram para a Ilha de São Vicente,
onde, por uma enorme coincidência, chegaram justamente no dia do santo
homônimo, o que faz algumas pessoas acreditarem que foi Martim Afonso que deu
ao local o nome de São Vicente, quando, na verdade, o local já tinha este nome
há décadas e já era presente nos mapas, batizado muito provavelmente pela
expedição de Américo Vespúcio em 1502.
E assim, finalmente, temos o início da história paulista:
"Aqui neste porto de São Vicente varamos uma nau em
terra. A todos nos pareceu tão boa esta terra que o capitão determinou de a
povoar, e deu a todos os homens terras para fazerem fazendas; e fez uma vila na
Ilha de São Vicente e outra nove léguas dentro pelo sertão, à borda de um rio
que se chama Piratininga; e repartiu a gente nestas duas vilas e fez nelas
oficiais: e pôs tudo em boa obra de justiça de que a gente toda tomou muita
consolação, com verem povoar vilas e ter leis e sacrifícios, e celebrar
matrimônios, e viverem em comunicação das artes, e ser cada um senhor do seu, e
vestir as injúrias particulares, e ter todos os outros bens da vida segura e
conversável."
Assim, estava oficializada a aldeia de São Vicente como
vila. O local já era povoado pelos guaianases e por João Ramalho desde pelo
menos 1518; Ramalho, português, vivia dentre os índios havia muitos anos, e
casou-se com Bartira, filha do rei Tibiriçá, com quem tinha ótima amizade. São
considerados como primeiros paulistas justamente os filhos de Ramalho e Bartira:
o encontro do sangue entre dois mundos tão diferentes, e duas culturas que se
uniram por interesses mútuos e obra do destino para dar origem à nossa Cultura
Paulista.
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